quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

O Enem e a inversão de valores da sociedade brasileira


Vivemos num país em que aprendemos desde cedo que Portugal “Descobriu” o Brasil. Dando a entender que os primeiros moradores – pelo menos os que temos notícias – nada eram, nada faziam.
Vivemos num país em que a escravidão de seres humanos foi legalizada durante quase 400 anos e até hoje causa reflexos na desigualdade social.


Vivemos num país onde muitas praças, ruas e escolas carregam placas com nomes de militares que mataram e torturaram brasileiros; ou nomes de pecuaristas e empresários que sempre se alimentaram do trabalho escravo e degradante.


Vivemos num país em que o ensino religioso nos faz saber desde cedo que o homem é a cabeça da família e a mulher – criada a partir da costela do homem – é sua companheira, auxiliadora; ou mesmo uma propriedade, como bem explícito no Livro de Êxodo.

Vivemos num país em que os sociólogos e suas teorias “furadas” são facilmente substituídos pelo senso comum das conversas de bar, sob o novo “argumento” reacionário chamado de “minha opinião”.

Vivemos num país em que os defensores de direitos humanos – capazes de arriscar a vida por aqueles que não são amparados nem pelo Estado nem por advogados particulares – são chamados de defensores de bandidos.

Vivemos num país onde negros cotistas são tratados como subclasse dentro das próprias universidades onde estudam.

Vivemos num país onde a mulher que cria um filho sozinha é “mal vista” pela sociedade, ao passo em que o pai solteiro é símbolo de homem responsável.

Vivemos num país onde a mulher que aborta é demonizada, mas ninguém quer saber quem era o pai daquele feto que foi parar no lixo.
Vivemos num país em que as mulheres ganham salários bem inferiores aos dos homens, exercendo as mesmas funções.

Enfim, vivemos num país em que nossos valores monolíticos têm amordaçado, historicamente, a voz dos oprimidos, dos ofendidos, dos humilhados, dos invisíveis, dos “Ninguéns” (como diria Eduardo Galeano).

Vivemos num país onde o machismo, o preconceito, o racismo, a concentração de renda e de poder político são marcas estruturais da sociedade.

Aí, depois de mais de 500 anos de submissão a esses valores, num belo final de semana, o Enem trás à tona uma pequena amostra do quanto os tais valores atrasam nossa sociedade. Bastou isso para a horda de reacionários de plantão soltar rancor pelas narinas e bradar que existe uma “inversão de valores na sociedade brasileira”.

Que bom que há! Ou pelo menos que começa a existir um movimento que tenta mesmo inverter esses valores. Já estava passando da hora disso acontecer.

Mas ainda é pouco. E sabe por que é pouco? Porque ainda temos que explicar a um monte de gente que debater os motivos que fazem persistir a violência contra a mulher não é coisa de esquerdista, de comunista; é coisa de ser humano.

Ainda temos que explicar que respeitar a mulher, como ser humano, como ser pensante, como gente; e não como um objeto ou um animal de estimação, não é doutrinação comunista, é simplesmente ser um homem de verdade.

Ainda temos que explicar que este debate é urgente e necessário. Explicar que se trata de uma questão que está para além da eterna guerra entre “Coxinhas” e “Petralhas”.
Realmente, sair da zona de conforto não é fácil; romper com valores seculares é complicado mesmo, sobretudo para quem sempre se beneficiou de toda a estrutura que mantém esses valores, ainda que de forma involuntária.

Mas é preciso.
A universidade não precisa apenas de matemáticos, engenheiros, advogados. Precisa de cabeças pensantes, para atuar em todas as graduações com capacidade mínima de entender as dinâmicas sociais do Brasil; capazes de dar sentido ao que se aprende nas salas de aula.

Tudo que a universidade não precisa é de gente fechada, rancorosa, avessa às mudanças, trancada em sua caixinha.
Tudo que a universidade precisa é de pessoas livres. Por isso, “Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre”. (Simone de Beauvoir).


(*) Chagas Filho

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